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Importante posicionamento sobre aborto seguro: SBMFC e GT Mulheres na MFC


22 de setembro de 2023, Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade


Importante posicionamento sobre aborto seguro: SBMFC e GT Mulheres na MFC


NEM PRESA, NEM MORTA: É PELA VIDA DAS MULHERES


“A criminalização do aborto não é efetiva para a redução dos abortos e apenas provoca sofrimento e mortes, atingindo as mulheres mais vulneráveis. Para a redução do número de abortos provocados, é necessário aliar educação sexual, acesso a métodos contraceptivos efetivos e, por mais paradoxal que possa parecer, a descriminalização do aborto. É preciso, portanto, descriminalizar o aborto e garantir amplo acesso ao aborto legal e seguro no Brasil, para reduzir a mortalidade materna, e, ao mesmo tempo, cuidar de todas as mulheres, diminuindo os efeitos perversos de marcadores de classe, raça, idade e região.” (AMORIM, Melânia In: BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2018)


Desde 2015, configura-se dentro da programação de Congressos Estaduais e Brasileiros de Medicina de Família e Comunidade a necessidade de debater as implicações de Médicas e Médicos de Família e Comunidade na assistência às situações de gravidez indesejada, produzindo reflexões sobre a ausência do tema na formação e assistência na Atenção Primária à Saúde (APS) (GIUGLIANI et al., 2019).


Liderada por médicas organizadas no Grupo de Trabalho Mulheres na Medicina de Família e Comunidade, essa discussão ganhou força e mobilizou manifestações diversas entre associados da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), especialmente à época das eleições para sua diretoria em 2020, tendo a chapa que assumiu a diretoria manifestado posição favorável à descriminilização do aborto no Brasil durante o pleito (CHAPA 1 – MFC COM TODAS AS LETRAS, 2020).


Hoje, no dia 28 de setembro de 2021, Dia da Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe, a SBMFC, vem a público anunciar seu primeiro posicionamento oficial sobre a temática, elaborado no contexto do 7o Congresso Iberoamericano de Medicina Familiar e Comunitária, do 16o Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade e do 1o Congresso Internacional de Saúde Planetária da WONCA.


Diante de um cenário em que mulheres são desproporcionalmente afetadas pela crise sanitária, mudanças climáticas e instabilidade política que vêm ocorrendo no mundo através de ameaças de restrições e retrocessos já concretizados no campo dos direitos humanos, destacadamente no acesso aos direitos sexuais e reprodutivos, é urgente reconhecer esta como uma questão de saúde pública e planetária (DE PAULA et al., 2021).


A SBMFC reconhece como essencial discutir o acesso seguro ao aborto como um direito humano de mulheres, pessoas trans e não binárias, no âmbito da justiça reprodutiva, em que especialmente as pessoas negras e mais vulnerabilizadas são vítimas da falta de acesso à anticoncepcão, planejamento reprodutivo, segurança e inclusive, ao aborto seguro nas situações já previstas em lei.


É sabido que o aborto, historicamente, permeia diversos embates ideológicos e religiosos, sendo um assunto em que o papel de médicas e médicos, mesmo antes de Hipócrates, é notoriamente pautado por questões relacionadas à ética, aos limites do exercício profissional e que vem ganhando destaque em relação à saúde pública e às consequências para a vida das mulheres (GIUGLIANI et al., 2019). No mundo, a estimativa é de que, a cada ano, 56 milhões de mulheres provoquem aborto, sendo 25 milhões de forma insegura (GANATRA et al., 2017), levando a cerca de 47 mil mortes por suas complicações. Os dados da Organização Mundial de Saúde mostram que a quase totalidade dos abortos inseguros é realizada nos países em desenvolvimento (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020), onde as leis com relação ao aborto são mais restritivas, como no Brasil.


Em nosso país, o aborto não é qualificado como crime quando ocorre naturalmente ou quando praticado por profissionais da medicina em três situações: (1) em caso de risco de vida para a mulher causado pela gravidez, (2) quando a gestação é resultante de um estupro ou (3) se o feto for anencefálico (BRASIL, 1940, 2012) – e mesmo nessas situações ainda se observam diversos obstáculos no acesso ao aborto previsto em lei, o que fortalece argumentos em defesa da APS como espaço para provimento de aborto legal, conforme preconizado pela Organização Mundial de Saúde e realizado em outros países (MAIA, 2021). Em todas as demais situações, o aborto hoje é considerado um crime, com penas previstas de 1 a 3 anos de detenção para a mulher que o provoca, e de 1 a 4 anos de reclusão para a/o médica/o ou para qualquer outra pessoa que realize o procedimento de retirada do feto em outrem.


Apesar da equidade ser um princípio doutrinário do Sistema Único de Saúde (SUS), o acesso à saúde e, por conseguinte, o acesso a métodos contraceptivos é profundamente desigual no país, acentuando as iniquidades já existentes. Por isso, milhares de mulheres no Brasil se submetem a abortamentos clandestinos por gravidezes indesejadas e por outras razões além das acima relacionadas. Assim, “enfrentar com seriedade o fenômeno do aborto como uma questão de saúde pública significa entendê-lo como uma questão de cuidados em saúde e não como um ato de infração moral de mulheres levianas” (DINIZ, 2007).


Já foi demonstrado, a partir de análises estatísticas, que o enquadramento jurídico do aborto não tem qualquer efeito sobre a incidência do aborto, mas afeta dramaticamente o acesso ao aborto seguro. Isto é, a ocorrência de abortos não aumentou em países onde a legislação permite a realização do aborto por opção da mulher – na sua maioria países desenvolvidos –, mas a realização de abortos inseguros diminuiu muito nesses países, reduzindo também a morbimortalidade associada (SEDGH et al., 2016).


Abortamentos inseguros ou clandestinos aumentam em muito o risco de morte e, na contramão do princípio da equidade no SUS, as consequências físicas, psicológicas e sociais atingem mais as mulheres negras, indígenas, de baixa escolaridade, com mais de 40 anos ou menos de 14, das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e vivendo sem união conjugal. São as mulheres em maior situação de vulnerabilidade social que mais se encontram submetidas a situações de abortamento inseguro e que apresentam maior dificuldade de acesso aos serviços de saúde de uma maneira geral e de abortamento legal (BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2007). Estas situações de vulnerabilidade influenciam também o número de óbitos por aborto inseguro: o maior número de óbitos se dá nos grupos de maior vulnerabilidade (baixa escolaridade e raça/cor negra) (MARTINS et al., 2017).


No País, cerca de hum milhão de abortos induzidos ocorrem todos os anos e levam 250 mil mulheres à hospitalização. O aborto inseguro causou a morte de 203 mulheres em 2016, o que representa mais de uma morte a cada 2 dias. Esses dados foram apresentados no 1o dia de audiência pública da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, no Supremo Tribunal Federal, para discutir, em agosto de 2018, a questão relativa à recepção, pela Constituição Federal de 1988, dos artigos 124 e 126 do Código Penal, que instituem a criminalização da interrupção voluntária da gravidez, pela ordem normativa vigente (BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2018).


Nesse evento, Maria de Fátima Marinho de Souza, diretora do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde, afirmou que: “A estimativa do Ministério da Saúde é de cerca de 1 milhão de abortos induzidos, portanto, uma carga extremamente alta que independe da classe social. O que depende da classe social é a gravidade e a morte. Quem mais morre por aborto no Brasil são mulheres negras, jovens, solteiras e com até o Ensino Fundamental” (BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2018).


Na mesma ocasião, Rosires Pereira de Andrade, porta-voz da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), defendeu a descriminalização do aborto: “É a clandestinidade e a falta de políticas públicas que criam a figura do aborto inseguro”, disse. “Quando uma mulher decide interromper uma gravidez, ela precisa de cuidados médicos e não da polícia”, completou (BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2018).


No Brasil, devido à criminalização, os dados sobre aborto e suas complicações são incompletos, especialmente dos abortamentos clandestinos. E, ressalte-se, os dados assistenciais estão somente disponíveis para o setor público. Já os dados de mortalidade dependem de investigação do óbito (CARDOSO; VIEIRA; SARACENI, 2020).

No período entre 2008 e 2015, ocorreram cerca de 200.000 internações/ano por procedimentos relacionados ao aborto, sendo cerca de 1.600 por razões médicas e legais. De 2006 a 2015, foram encontrados 770 óbitos maternos com causa básica aborto no Sistema de Informação de Mortalidade (SIM, MS) (CARDOSO; VIEIRA; SARACENI, 2020).


Experiências de outros países, como o Uruguai, em um contexto anterior à descriminalização da interrupção voluntária da gravidez, mostram que uma legislação que permite à instituição de saúde fazer o acolhimento, sem julgamento da mulher que pensa em fazer abortamento, independentemente da causa, traz uma importante redução da mortalidade feminina, possibilitando espaço para ponderar e amadurecer a tomada de decisão e garantir coordenação do cuidado e a devida atenção sanitária necessária frente à situação (BRIOZZO et al., 2016). A prevenção do abortamento inseguro, com o provimento de aconselhamento pleno para mulheres indecisas quanto à manutenção de uma gestação, cuidados pós aborto e contracepção, é um papel primordial da atenção à saúde sexual e reprodutiva (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2013).


Temos consciência de que a Medicina de Família e Comunidade e a APS têm papel fundamental no combate às iniquidades, na luta por autonomia das mulheres, na garantia de cidadania e direitos para mulheres, na garantia de acesso às melhores informações baseadas em evidências, na garantia de acesso ao cuidado em saúde com equidade, com segurança, considerando a interseccionalidade de opressões e sem produzir violência e marginalização. O acesso universal à saúde reprodutiva e sexual está entre os dez princípios chaves da conclamação para ação de médicas e médicos de família e comunidade do mundo pela saúde planetária (WONCA WORKING PARTY ON THE ENVIRONMENT, THE PLANETARY HEALTH ALLIANCE, 2019) .


Considerando o contexto apresentado, os dados epidemiológicos atuais e a aproximação de médicas e médicos de família e comunidade das pessoas direta e expressivamente afetadas, bem como o compromisso com a saúde pública e a redução das iniquidades, a SBMFC se posiciona a favor da descriminalização do aborto, valorizando a implicação da MFC nessa questão e sua preocupação com possíveis retrocessos na condução de políticas públicas nacionais voltadas para a atenção à saúde da mulher.


A SBMFC tem compromisso em atuar para diminuir as iniquidades em saúde. A descriminalização do aborto, de acordo com as evidências cientificas, é questão essencial para o pleno e ético exercício de nossa função profissional perante as necessidades em saúde das mulheres e compromete ao diálogo institucional com todas e todos no sentido do fortalecimento da APS e na construção de políticas públicas coerentes com os princípios e diretrizes do SUS.


Sou a favor da legalização porque a simples descriminalização não resolve o problema das mulheres de baixa renda, que continuarão sem assistência médica. A legalização é mais coerente com a nossa proposta, embora a descriminalização já seja um passo. No entanto, o Estado deve assumir a tarefa de conscientizar as mulheres sobre os métodos contraceptivos, fornecendo-lhes assistência médica gratuita e de alto nível, inclusive no caso do aborto. (GONZALEZ, Lélia, 2020, ).


22 de setembro de 2023


Grupo de Trabalho de Mulheres da SBMFC


Diretoria da SBMFC

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